A CONTEMPORANEIDADE DA OBRA DE ARHUR BISPO DO ROSÁRIO
Resumo
No Brasil, a arte contemporânea começou a se desenvolver na década de 1950 com o movimento do Neoconcretismo, que trouxe à tona uma arte arrojada e autoral. Propõe-se reunir e comparar os dados recolhidos de artigos, jornais e revistas, catálogos de exposições e livros, sobre a contemporaneidade da obra de Arthur Bispo do Rosário. Negro, solteiro, sem parentes, alfabetizado, com antecedentes policiais que, em 25 de janeiro de 1939, ele foi internado na Colônia Juliano Moreira no Rio de Janeiro, com o diagnóstico de esquizofrenia paranoide, onde permaneceu por quase meio século, durante o qual criou uma obra contemporânea questionadora.
Palavras-Chave
Arthur Bispo do Rosário. Arte Contemporânea. Análise Comparativa. Analogias.
Introdução
O artigo tem como objetivo apresentar uma biografia resumida, descrição e análise comparativa de parte da obra de Arthur Bispo do Rosário em relação à obra de artistas contemporâneos. De forma mais geral, o artigo também aborda aspectos relacionados aos movimentos artísticos da História da Arte. O propósito é disponibilizar enfoques que associem a obra de Bispo do Rosário com as vanguardas artísticas e as produções elaboradas a partir de 1950, no campo das artes visuais. A justificativa para este estudo é a importância do artista para a história da arte brasileira e mundial.
1. RESUMO BIOGRÁFICO
A biografia de Arthur Bispo do Rosário foi descrita através de dados encontrados em catálogos de exposições de arte, recortes de jornais e revistas, relatos em livros publicados, vídeos, filmes de média e longa metragem exibidos sobre o tema. Optei por relacionar os acontecimentos marcantes na vida do referido artista.
Em 16 de março de 1911, nasceu em Sergipe, Arthur Bispo do Rosário, filho de Adriano Bispo do Rosário e Blandina Maria de Jesus, ele passou a residir em localidade próxima à Bahia.
Em Salvador ingressou na Marinha de Guerra do Brasil e, posteriormente, foi transferido para o Rio de Janeiro onde chegou a ser campeão brasileiro e latino americano de boxe na categoria peso leve.
Acusado de insubordinação, foi preso diversas vezes na Ilha das Cobras, apresentando já nesta época uma personalidade complicada.
Em 20 de dezembro de 1933, com a carreira de pugilista em declínio, abandonou a Marinha e passou a exercer diversos ofícios, entre eles o de lavador de bondes e borracheiro da Light, onde foi demitido em 23 de fevereiro de 1937.
A partir de então, trabalhou com funções corriqueiras e cotidianas na casa de um conhecido advogado.
Em 1938, teve uma visão de Cristo “descendo” no quintal da residência dos Leone em Botafogo, protegido por sete anjos azuis, recobertos por uma aura luminosa.
Após delirar durante dois dias, foi preso e internado no Hospital dos Alienados da Praia Vermelha, na Urca, de onde mais tarde foi transferido para o Hospital D. Pedro II, no Engenho de Dentro.
Em 25 de janeiro 1939 foi transferido para a Colônia Juliano Moreira. Consta em sua ficha médica apenas que ele é negro, solteiro, de naturalidade desconhecida, sem parentes, sem profissão, alfabetizado e com antecedentes policiais. Diagnóstico: Esquizofrenia paranoide. É lotado no Pavilhão Ulisses Viana, onde permaneceu por quase meio século.
Sabe-se, que na década de 40, ele trabalhou em um escritório de advocacia na Av. Rio Branco, no Glória, como porteiro do Hotel Suíço, e no início dos anos 60, como guarda costas do Senador Gilberto Marinho, e em uma clínica pediátrica à Rua Munis Barreto, em Botafogo. Isolado em um sótão, teria realizado o início de sua obra.
São brinquedos feitos artesanalmente em madeira, miniaturas de barcos, navios fragatas e outros objetos da memória, que demostra a sua experiência na Marinha de Guerra.
Em 08 de fevereiro 1964, foi alocado na Colônia Juliano Moreira de onde não saiu mais. Entre 1981 e 1983, viveu no Pavilhão Ulisses Viana, foi atendido pela estagiária de Psicologia Rosângela Maria Magalhães Gony, por quem se apaixona.
É também no Pavilhão Ulisses Viana onde conquistou respeito e admiração pelos funcionários da Colônia e adquiriu um espaço relativamente amplo onde realizou com os restos que encontra na própria Colônia, o seu trabalho, 802 peças com diferentes técnicas entre elas a costura e o bordado.
A descoberta do trabalho de Arthur Bispo ocorreu em 1980, quando Hugo Denizart visitou a Colônia Juliano Moreira, realizando o curta-metragem “Prisioneiro da Passagem” sobre Arthur Bispo do Rosário. Frederico de Morais, crítico de arte, reconheceu as obras e as integrou à mostra, “À Margem da Vida”, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.
Foi fundada a Associação dos Amigos da Colônia Juliano Moreira em 1989, visando a preservação de sua obra, tombada em 1992, pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural – INEPAC. Sua produção está no Museu Bispo do Rosário.
Em 05 de julho 1989, às 19 h, faleceu de infarto do miocárdio, arteriosclerose e broncopneumonia.
2. TRAGETÓRIA DA OBRA
A partir da descoberta da obra de Arthur Bispo por Hugo Denizart e Frederico de Morais, houve uma sucessão de Mostras e Exposições que incluíram sua obra no circuito nacional e internacional de arte. O percurso da obra pode ser observado no site da Enciclopédia Cultural do Itaú que mantem sempre atualizado o trajeto de sua obra ainda em desenvolvimento. Com o título “Registros de Minha Passagem Pela Terra”, em 1989 foi organizada a primeira exposição individual na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro. Em seguida a mostra foi apresentada em diversas capitais do Brasil. Sua incursão seguiu numa linha ascendente até os dias atuais, inclusive com participações em Bienais no Brasil e no mundo.
3. ANÁLISE DESCRITIVA DA OBRA
Nas análises e descrições, tornei disponíveis aspectos que conectam a obra do artista, a movimentos artísticos da História da Arte, assim como aos conceitos das vanguardas artísticas e das produções elaboradas a partir de 1950. Para melhor compreensão, elenquei os trabalhos em categorias independentes: Textos, Roupas, Objetos e Assemblagens. Essa pesquisa aborda a parte principal da obra de Arthur Bispo do Rosário.
3.1. Textos
Seus textos bordados fundam a premissa de seu mundo obra. Em um de seus estandartes apresenta a visão que teria tido de Jesus Cristo. Em outros estandartes ele relata os roteiros que fazia de bonde pelas ruas do Rio de Janeiro de Botafogo ao centro, e tudo que avistava pelo caminho, coisas como o ser humano, as ruas da cidade, o mapa do Brasil, insígnias da marinha, anotações possivelmente memórias de quando era como fuzileiro naval, jogos infantis e ringue de boxes. Em outro estandarte ele retrata a planta arquitetônica da Colônia Juliano Moreira, onde esteve internado até sua morte, e o trajeto para se chegar até lá. De acordo com Frederico de Moraes , os textos de Bispo formam uma espécie “summa” do conhecimento, uma enciclopédia ilustrada, uma História Universal. (1990, p19). Um acumulado de anotações de sua experiência e conhecimentos de vida, e da história e geografia mundial.
3.2. Roupas
Arthur Bispo bordou em uma das mangas de seus fardões, a tabela de cores que ele chamava de “Sembrantes”, que era a senha para entrada em seu delírio. Frequentemente perguntava: qual é a cor de seu “sembrante”? das roupas constam fardões bordados por ele com adereços e textos; em outros reúne e borda medalhas comemorativas de lutas, assim como borda também o símbolo da justiça. De todas as suas roupas, a que ele mais esmerou foi “O Manto da Apresentação”, ou seja, a roupa de seu encontro com Deus. Na parte interna deste manto, ele relacionou os nomes de todos os escolhidos por ele que o acompanhariam em sua viagem; e na parte externa, relata a longa estrada de sua vida, como tudo que depois, em sua obra, veremos em forma de objeto. De acordo com Frederico de Morais, vestir o manto era como vestir o mundo. (1990, p20).
3.3. Objetos
Sua cama envolvida por véus, nela vestido com seu manto Arthur Bispo subiria ao céu. Os objetos são criações tridimensionais dos “textos bordados”. Escada, esquadro, formão, tramela, fita métrica, serrote, colher de pedreiro, régua, carrinho de feira, ralador, mata borrão, abridor de latas, amassador de pilão, colher, cortador de grama, rolo de pastel, marreta, cabide, chocalho, arco de puta, martelo, chave de porca, tesoura, grelha, bibloquê, foice, enxada, machadinha, rede, etc. Todos envolvidos com linhas enroladas em tom de azul, desfiados de seus uniformes, formam objetos que existiam na civilização brasileira. Objetos em madeira, às vezes, com uma mão de tinta branca rala. Objetos isolados, de difícil decifração e com forte carga simbólica; pequenas caixas, nas quais ficam colocados papéis recortados e coloridos, às vezes em garrafas de plástico transparentes, há também a “Roda da fortuna” objeto similar ao de Marcel Duchamp, assim como barcos de guerra, torpedeiros, contra torpedeiros, fragatas, encouraçados, caravelas, veleiros, caiaques, barcos à vela e embandeirados. Os cetros das misses às faixas bordadas com informações de cada país temas que podemos acusar como característicos da sociedade de consumo e valores de uma época. De acordo com Frederico de Morais, esses objetos estavam localizados na memória de sua infância e juventude. Espécie de uma arqueologia existencial (1990, p,21).
3.4. Assemblagens
Objetos industrializados, feitos em série, conectados ao consumo e a cultura de massa, acumulações que Arthur Bispo chamava de “vitrines”. Em cada painel, uma linha de objetos: canecas de alumínio, botões, garrafas de plástico cheias de papel picado, ferragens, sabonetes, colheres, sapatos, botas de borracha, material elétrico e eletrônico. Existem objetos que agrupados diferem entre si, porém, quando reunidos no suporte suas texturas e materiais os aproximam. Objetos rituais, que Arthur Bispo chamava de “Macumba”. Ele juntava congas em um compensado de madeira, escorados por ripas de cabo de vassouras. Reunia ainda, galochas, colheres, bolsas, fivelas de cinto, cabides, seringas, pentes, ferramentas, chapéus, pipas, rodos e bolas. As vitrines de Arthur Bispo possuem um sentido mais crítico social, por serem compostos com objetos recolhidos na própria Colônia, que possui a dimensão de uma cidade com a população de pacientes, funcionários e residentes. Objetos recolhidos na Colônia, já desgastados pelo tempo, quando juntados ao suporte formavam expositores, caixas, vitrines e fazem lembrar um bazar.
4. NA OBRA DE ARTHUR BISPO DO ROSÁRIO, DADOS QUE CARACTERIZAM ASPÉCTOS DOS MOVIMENTOS ARTÍSTICOS DA HISTÓRIA DA ARTE:
4.1. Arte Conceitual
Na arte Conceitual noção de obra pode ser substituída por algo cuja única função seja significar. A arte conceitual se dá no exato momento em que o artista transforma o objetivo em subjetivo, o material em espiritual, o prático em teórico. Nela, a ideia já é a própria arte, à medida que se pode ver a arte como um sistema de símbolos, comunicação entre pessoas, que pressupõe um contínuo de relações entre: obra, autor e público.
Na arte conceitual a atitude mental é o mais importante, de acordo com Frederico de Morais, a Arte Conceitual, comenta-se a si própria, é a arte sobre a arte, trata-se de um artesanato mental (1990, 26).
Assim sendo, Arthur Bispo fez arte conceitual quando conceituou, através de seus textos bordados, cada objeto com o seu nome e um número, como se quisesse reordenar o mundo. De acordo com Lucia Castelo Branco , o teor conceitual na obra de Bispo passa por seus textos bordados. Estes textos narrativos, de caráter substantivos, ausentes de pontuação, desenham o que não podemos ler, sua ausência de decifração é provocativa (1994, pg18).
Operando com as semelhanças, Arthur Bispo inscreve em seus textos o seu próprio nome, sua experiência de vida, seu conhecimento do mundo, além de reordenar o seu delírio e com os textos nos propõe uma ordem louca, modo inconsciente para a reconstrução de um mundo pensado. A escrita em sua obra recobre os objetos estes que são sempre distintos formam a base teórica de seu mundo. O teor conceitual da obra de Arthur Bispo aparece nos objetos e nos textos, que encontram em uma relação de distinção que vem dispor de maneira realista a arte de nossa época.
Argan expõe: Visto que o objeto é sempre um “distinto” no contexto do real, a regressão do objeto a coisa, comporta uma condição de indistinção e, portanto, (…) É, pois, o fim ou a negação radical da concepção humanista para qual a arte era distinção entre sujeito e objeto e definição de sua relação ao mesmo tempo espacial e dialética. (1992, p.579).
4.2. Dadaísmo
Foi a primeira manifestação de ante arte do século XX, refletindo naquele momento um sentimento de saturação cultural e de crise moral e política. Um dos principais dadaístas foi Marcel Duchamp , ele exaltava a contradição e o absurdo, considerando o humor e o riso seus instrumentos favoritos. Com Marcel Duchamp a arte foi pensada até o fim, e dissolveu-se no dadaísmo, O nada é tudo que resta, afirmou (1960, p45). O fato de ter dado importância ao acaso e de ter apostado na espontaneidade absoluta, isto sim possui um peso significativo. Segundo Marcel Duchamp, O mundo não passa de uma configuração de objetos, exatamente por que existe uma realidade por detrás deles (1960, p45).
Há conexão entre a obra de Arthur Bispo do Rosário e o dadaísmo, pela liberdade de criação que se torna idêntica com a espontaneidade que os dadaístas buscavam no processo de dissolução da arte, além do aparente absurdo encontrado na estética dos objetos.
Arthur Bispo encontrava seus objetos no mundo cotidiano e lhes dava um significado especial, quando através da simples escolha; os colocava como parte de seu mundo contudo, nunca se intitulou como artista.
Marcel Duchamp dizia em 1913, tive a feliz ideia de montar uma roda de bicicleta sobre um banquinho de cozinha e observá-la girando. Desejo ressaltar, que a escolha de um “ready made” essa ideia nunca foi ditada por considerações de prazer estético; a escolha baseou-se em uma reação de indiferença visual, independente do bom ou do mau gosto (1920, p.45).
Assim operando com semelhanças entre “atitudes”, no caso de Duchamp, a intenção norteada pela razão, e no caso de Arthur Bispo, a intencionalidade cercada de um espírito de liberdade e espontaneidade. Foi seu delírio o grande norteador de sua criação artística. Neste sentido, engendra-se a ponte de ligação da obra de Arthur Bispo com a essência do dadaísmo.
Ao operar com as diferenças, elas aparecem enquanto o sujeito “Arthur Bispo do Rosário” está inscrito em sua obra, Duchamp procurava o distanciamento através de sua indiferença. Como dizia Jean Dubuffet , A verdadeira arte está ali, onde ninguém pensa nela, nem pronuncia o seu nome. A arte detesta ser reconhecida e saudada por seu nome (1947, p.54).
4.3. Pop Art
A pop art é um movimento artístico surgido na década de 1950 na Inglaterra, onde os quadros transformam-se em objetos, e os objetos transformam-se em quadros. Ela torna elegante o comum e o vulgar. Os temas são recolhidos no meio urbano: publicidade, quadrinhos, supermercados, hot-dogs e hambúrgueres, tevê, cinema, luminosos, sinalização de trânsito, atrizes, cantores, ídolos de massa. Por fim um acesso aos hábitos de gosto, símbolo do regimento social. De acordo com Edward Lucie-Smith, a Pop Art. Descreve o ambiente consumista e sua mentalidade: a sua fealdade converte-se em beleza (1993, p,161) É também tratada por alguns críticos como uma forma de arte ante sensitiva, impessoal e fria, emocionalmente distante; para outros ela tem um caráter Hot isto é ganha dimensão crítica e bem humorada.
Nas assemblagens de Arthur Bispo, onde ele reúne objetos geralmente industrializados, produzidos em série, ligados ao consumo e a cultura de massa, a semântica da qualidade e dos restos está em sua produção e na imagética pop. Arthur Bispo organizou suas acumulações, as que chamava de vitrines, de forma radical e menos aleatória, não tratou apenas de quantidade, mas também de qualidade.
A relação da obra de Arthur Bispo com aspectos da pop art é atribuída ao sentido formal de suas vitrines, seguindo critérios de função, material, cor e também pelo sentido crítico social, uma vez que a quase totalidade dos objetos que aparecem nas obras foram recolhidos na própria Colônia Juliano Moreira, refletindo aspectos de uma sociedade e de uma época. Nesse sentido a arte de Arthur Bispo também transita perfeitamente junto ao movimento artístico do Novo Realismo que aconteceu na França em1960.Quando artistas se reuniram para questionar a arte abstrata, figurativa e inventada, dando ênfase a realidade e materialidade da obra.
5. ASPECTOS DA OBRA DE ARTHUR BISPO DO ROSÁRIO EM ANALOGIAS COM A OBRA DE ARTISTAS CONTEMPORANEOS.
5.1. Textos
As Analogias da obra de Arthur Bispo com a obra de artistas contemporâneos operam-se pelas semelhanças. Em seus textos Bispo desenhou aquilo que não podemos ler, e nos propôs, em sua poética, recursos inconscientes para reconstrução de seu mundo. Os artistas contemporâneos procuram ultrapassar as fronteiras estéticas em todos os domínios da forma e conceitos, através de novas combinações de textos e imagens. Por exemplo, Leonilson ,com sua escrita engendrada em sua obra, fez uso de pinturas, costuras e de bordados, todos foram habituais em sua produção. e Kurt Schiwitters através de suas colagens, ficou conhecido por um grande público e que assim aproximou-se das múltiplas dimensões e relações do espírito humano, da psique e do intelecto, devolvendo ao mundo sua sagacidade crítica.
Arthur Bispo, em seus textos bordados, demonstra a utilização do Letrismo, q um princípio artístico desenvolvido na Romenia em 1942, que se espalhou pela Europa. Em seu trabalho, ele relata toda sua bagagem em textos e imagens, fazendo perceber através de sua obra, que ele passou por processos de desconstrução e, na síntese desta heterogeneidade, reconstruiu seu mundo com criatividade e imaginação. Todos os artistas acima citados engendraram pelo uso da escrita em suas obras, o que os aproximam esteticamente do trabalho artístico contemporâneo.
5.2. Roupas
Arthur Bispo confeccionou roupas em seu trabalho, de todas elas o Manto da Apresentação, verdadeiro resumo de suas preocupações. Trata-se de uma roupa que o identificaria no momento em que se apresentasse a Deus.
Na parte externa do manto ele bordou imagens de cores variadas, símbolo de sua existência; na parte interna, bordou em azul, num fundo branco, o nome de todos aqueles que ele havia escolhidos para acompanha-lo em sua viagem. Além do manto, Arthur Bispo bordou fardões com textos e ornamentos e dedicou-se de forma encantadora e divertida o ambiente das misses, transformou panos em faixas, e criou cetros enrolados em fios brancos e azuis. Suas faixas de misses retratam uma imensidão de palavras bordadas, que, de forma incoerente, registram os padrões e acontecimentos de uma época.
A partir de1964, a produção artística de Hélio Oiticica , constituiu-se em torno de um programa: Éden, Ninhos, Bólides, Parangolés Em sua obra há capas, tendas, estandartes, bandeiras e faixas construídas com tecidos e cordões e que, às vezes, produzem em suas faces palavras, textos e fotos. Os Parangolés são para serem vestidos; seu uso pode ser associado à dança e a música, rompe a distância entre a obra e o espectador. Segundo Celso Favaretto, ao vestir um parangolé a pessoa deixa de ser um espectador e passa a ser parte da obra de arte caracterizando assim a arte pública, coletiva, ambiental (1992 p.63).
Produzindo com semelhanças, tanto os parangolés de Hélio Oiticica, como o fardão, o manto, as faixas de misses e complementos de vestuário que Arthur Bispo criou, foram feitos para serem vestidos, possuindo assim aspecto formal e conceitual próximos, além de eminente sentido de identidade que envolve as obras dos dois artistas. Poder-se ainda, conectá-las aos dos concursos de misses dos anos 60, que provocava os valores coletivos de uma sociedade a que Arthur Bispo descreveu através de sua obra, a qual se constitui também dentro do contexto da arte contemporânea brasileira e mundial. Constato que a obra de Artur Bispo, transpassa pela trajetória de Hélio Oiticica, tangenciando a werable art .
5.3. Objetos
Os artistas do século passado construíram seus objetos, em sua maioria, utilizando de materiais já existentes, encontrados e provenientes do mundo, restos da sociedade de consumo humano. Com esses materiais, assumiram posição crítica e metafórica, com alegações visuais continuamente de procedência ilógica.
Artistas como Marcel Duchamp, Rauschemberg , Chisto e Boltansk integraram o fluxo arqueológico da arte francesa, e o Novo Realismo . Esses movimentos marcam a História da Arte através da utilização de objetos. Os objetos de arte se definem por exigirem uma percepção estética, muito mais da forma do que do conteúdo. Esse arranjo formal, está presente na arte dos artistas do Novo Realismo, assim como na obra de Arthur Bispo, que ressignificou objetos, enrolando-os com uma linha azul desbotada que desfiava de seus uniformes, reconstruindo objetos já existentes e que faziam parte de seu mundo; lembranças da infância e juventude.
A obra de Arthur Bispo é tosca, rude, direta, lida com materiais pobres, relacionados à Arte Povera, em moda nos anos 70. Ele reconstruiu objetos isolados como a “Cama Nave”; que na síntese, representa leito de nascimento, de amor e de morte. Este objeto assemelha-se as obras de Rauchemberg “Bed” e a “Cama Ninho” de Hélio Oiticica. Assim como “Roda da Fortuna” de Arthur Bispo, impressiona por sua relação estética com a “Roda de Bicicleta de Marcel Duchamp”. Os objetos envolvidos por linhas estão esteticamente relacionados com os objetos arqueológicos de Christian Boltanski, artista plástico, escultor e fotografo francês, que utilizou de imagens do holocausto para criar suas obras. Além disso há uma relação com a obra de Cristho, que trabalha com a embalagem de objetos cotidianos ou extraordinários, procurando afastar-se da concepção tradicional da arte. Ao realizar estas ligações, percebo que a obra de Arthur Bispo transita com maturidade no território da arte atual. Como um poeta da existência, ele concentra toda a sua obra no campo da estética contemporânea.
5.4. Assemblagens
A assemblagem é um termo francês que foi trazido à arte por Jean Dubuffet em 1953. É baseado no princípio que todo e qualquer material pode ser incorporado a uma obra de arte, criando um novo conjunto sem que se perca o seu sentido original. É uma junção de elementos em um conjunto maior, onde sempre é possível identificar se cada peça é compatível e considerada obra. Os artistas de espirito meditativo transformaram o que encontraram no meio ambiente e na memória e o reativaram na linguagem metafórica. Armam, através de amontoamento de objetos, relíquias ou objetos retirados do domínio artístico, ou detrito selecionado nos afazeres cotidianos, acondicionou em caixas objetos simultaneamente. Daniel Spoerri , em Café da Manhã Quadro Armadilha, amontoou em suportes fixos os objetos que compõe uma mesa de café da manhã. Cesar em 1952, iniciou-se na soldadura e realiza as suas primeiras esculturas com desperdícios de ferro.
Kurt Schiwittes , comenta: Agora, a tentativa de obter expressão na obra de arte também me parece prejudicial a própria arte. A arte é um conceito primordial, sublime como a divindade, inexplicável como a vida, indefinível e sem proposito(…)sei apenas como faze-la; conheço apenas o material que utilizo; não sei para que finalidade (1999, p.388).
Todos produziram através de suas obras, forte crítica social e de costumes.
Arthur Bispo, fez suas vitrines se utilizando de objetos industrializados produzidos em série, ligados ao consumo. Essas obras que fazem lembrar expositores de produtos comerciais, também possuem um sentido crítico social. Ele as organizou de forma completa e não tratou apenas de quantidade, mas também de qualidade, ordenando-as pela cor e textura, forma e utilidade; objetos recolhidos na Colônia Juliano Moreira, símbolos daquela sociedade e época. Todos estes aspectos permeiam a arte contemporânea.
Conforme Walter Benjamin, trazer para mais próximo de si as coisas é igualmente um desejo apaixonado das massas de hoje, como é a tendencia desta de suplantar o caráter único de cada fato por meio da reprodução de sua produção. (2012, p.29).
O aspecto da produção em massa, que estava implícito na Pop Art, estava também inserido no contexto da obra dos artistas do novo realismo e as assemblagens produzidas por estes artistas e por Arthur Bispo, fazem parte desta estética. Onde a expressão não era a premissa do trabalho, mas sim um arranjo mais ligado ao real.
Considerações Finais
Arthur Bispo teve sua vida marcada pelo asilo em mais de 50 anos numa instituição psiquiátrica, o que não o impediu de criticar e simbolizar, através de seu trabalho, toda opressão do sistema psiquiátrico nacional da época. Hoje, sabe-se que com a reforma psiquiátrica, já não existem mais asilos psiquiátricos nos mesmos moldes, porém Arthur Bispo foi um importante questionador desse sistema, através de sua obra, ele conseguiu comunicar ao mundo todo um contexto institucional e também questionou a própria sociedade.
Arthur Bispo, através de sua obra questionadora com espontaneidade estética na escolha de seus objetos, reuniu, amontoou e selecionou com riqueza poética, em suportes precários a sua obra, aproximando assim, sua produção a produção de artistas contemporâneos. Ao ser descoberto na década de 1990, por Hugo Denizart e pelo crítico de arte Frederico de Morais, teve sua obra identificada como arte, e consequentemente, inserida no circuito nacional e internacional, o que o colocou como um dos maiores artistas brasileiros de sua época.
Embora fosse um artista asilado, sua obra engendrou por um contexto histórico cultural da arte mundial, o que de certa forma não mudou a sua condição. “Artista louco”, referiam a ele como se a arte fizesse diferença entre loucos e sensatos.
A circunstância da loucura transita pelos caminhos da criação artística, onde muitas vezes a loucura seduz por seu potencial criativo, assim como a arte perpassa pela irracionalidade. A forma como olhamos a arte implica cada vez mais em como ela nos olha, ou nos faz ver.
Foi possível demonstrar através das comparações observadas no corpo desse artigo, que a obra se insere perfeitamente dentro dos conceitos dos movimentos artísticos e que a História da Arte foi grande norteador que nos permitiu explicitar em quais aspectos a obra de Arthur Bispo se assemelha a obras de artistas contemporâneos e a movimentos artísticos da vanguarda, principalmente nas décadas de 1950.
Entende-se por contemporaneidade o período a partir do pós guerra e, de lá pra cá, depois dos ismos, a linearidade da História da Arte se dilui em meio a tantos aspectos novos que orientam a produção artística do nosso tempo. Considera-se, entretanto, que hoje na arte não há fronteiras entre a criatividade e o conceito, e que a arte, desde os primórdios da humanidade vai muito além das ajuizadas concepções estéticas, ainda que a cada dia ela nos leve a repensar mais nos limites da expressão humana, frente a adversidade.
Hoje enquanto o culto a imagem explora suas potencialidades expressivas através da tecnologia, em que as mostras nos museus estão cada vez mais inserindo novas formas do fluir a arte de nosso tempo, as pessoas cada vez mais leem e contextualizam a obra de arte da atualidade, encontrando poesia em uma arte criativa, critica, “inconsciente”, repleta de símbolos e significados, que operou e ainda opera transformações no meio social, ao demostrar as circunstancias em que ocorreram tais criações.
Arthur Bispo do Rosário, um demiurgo, artesão divino, que ao criar de fato outra realidade, modelou e organizou de maneira caótica sua existência de forma radical, criando assim uma obra contemporânea incontestável.
Referências
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